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Quando eu me descobri mãe… E negra

A maternidade me permitiu me reconectar com a minha ancestralidade - Arquivo Pessoal
Arquivo Pessoal

Publicado em 04/03/2022, às 06h49 por Toda Família Preta Importa


**Texto por Adriana Alves, gestora executiva, ativista do movimento negro e mãe da Alicia e Olivia

A maternidade me permitiu me reconectar com a minha ancestralidade
A maternidade me permitiu me reconectar com a minha ancestralidade (Foto: Arquivo Pessoal)

A maternidade me faz olhar para as minhas questões mais profundas: minhas sombras, alegrias, medos, culpas. E me despertei em diversas questões antes não acessadas. Mas aconteceu algo muito especial com o nascimento da minha filha mais velha, a Alicia, hoje com sete anos. Foi com ela que eu realmente descobri que sou uma mulher negra. Você pode estar se perguntando: como assim? Você não sabia que era negra? Claro que sabia, mas não é tão simples assim. Eu jamais me reconheci de tal forma antes. E para eu me explicar melhor, preciso rebobinar a fita para uns bons anos atrás.

Sou de uma família miscigenada, e como parte da estrutura racista de nossa sociedade, cresci sem me apropriar de minhas raízes africanas, sem saber o quanto é linda nossa cultura, sem conhecer a real história da escravidão, a luta e o poder de sobrevivência que temos. Dessa forma, desde muito cedo me condicionei a ser um modelo mais aceito de pessoa. E a primeira coisa que fiz naquela época foi alisar o meu cabelo. Me lembro de pedir a minha mãe, eu queria ter cabelos como das paquitas da Xuxa. Era a única referência que eu tinha de beleza.

Passei anos alisando o cabelo, sem saber como ele era realmente. Desde os 7 anos de idade, mais precisamente falando. Nada contra os alisados, aliás, amo a praticidade que nos promove. Mas no meu caso e de tantas outras pessoas aquilo era simplesmente uma fuga.

E não só o cabelo, mas me adaptei ao mundo não sendo eu mesma. Entrei no corporativo muito cedo, sempre muito competente sim, mas me podei demais. Aquela coisa que toda mulher vai entender: precisamos provar o tempo todo que somos capazes e competentes, precisamos nos portar de forma discreta o tempo todo para não sermos objetificadas, não podemos rir demais, nem se sobressair! Roupas que acentuam as curvas do corpo? Hum, melhor não.

Imagina então ser uma jovem negra, que cresceu ouvindo que “mulata é a cor do pecado”. Os olhares maliciosos sempre sugeriram isso no imaginário de nossa sociedade. A objetificação da mulher negra sempre foi muito presente e naturalizada nas novelas, nas músicas, nas cantadas baratas, e sim, no trabalho. Sempre fomos vistas (desde a época da escravidão até hoje) como as destruidora de lares. E para não ser alvo disso tudo, me moldei ainda mais. Foram anos assim. Décadas. A menina estudiosa, quieta, a profissional competente e muito discreta. Parece perfeito, mas só depois percebi que eu não fui inteira. E cresci não experienciando toda a potência e habilidades incríveis que hoje sei que tenho. Medo de ser demais. Medo de ser julgada. Medo do racismo estrutural, silencioso e cruel.

Me tornar mãe me fez enxergar a importância de ser eu mesma e valorizar minhas raízes
Me tornar mãe me fez enxergar a importância de ser eu mesma e valorizar minhas raízes (Foto: Arquivo Pessoal)

E a Alicia nasceu. E com a maternidade, também renasceu outra mulher em mim, mais corajosa, mais vulnerável, mais bonita, mais decidida. Também me impulsionou em muitas decisões importantes (que nenhum coach ou guru conseguiriam me convencer!). Esse é o poder da maternidade.

E a Alicia… Ah, ela é linda. Tom da pele como o meu, cabelos pretos cacheados. Sempre fui encantada pelos cabelos dela, são exatamente como eu sempre sonhei antes dela nascer. Amo cuidar deles.

Mas aos 4 anos, ela mesma começou a sentir (literalmente) na pele o racismo. Uma vez voltou da escola e me disse que o amigo dela a chamou de “cor escura”. Ela voltou triste para casa, já entendeu que o adjetivo foi para diminuí-la. A partir daí senti o peso da minha responsabilidade. A partir daí eu percebi que precisava descer do muro e lutar. Não poderia mais ser a pessoa que se esquivava do racismo para ser aceita. Eu precisava enfrentar de frente agora.

Comecei a empoderá-la, tentei mostrar a ela a nossa beleza. Me lembro que na época eu apresentei a ela algumas negras famosas que ela pudesse se identificar. Mostrei os vídeos da Beyonce, dançávamos as músicas juntas, e ela amava. Também comprei livros infantis com personagens negros, comprei bonecas negras, criei um ambiente mais rico para que ela pudesse se enxergar ali, e que gostasse daquilo. Mas por algum motivo eu não conseguia alcançar meu objetivo. Alicia ainda assim evitava as bonecas pretas, só apontava a beleza das meninas loiras na televisão, só queria ser a princesa de olhos azuis (porque dizia que a princesa preta não era bonita). Ela não gostava de se ver ainda.

O que será que faltava? Foi quando um dia eu estava arrumando o cabelo dela e disse: “Filha, seu cabelo é lindo demais!”, e ela olhou para mim e disse: “Mas eu quero ter um cabelo liso, igual ao seu”. E eu disse: “Mas por que, se seu cabelo é lindo desse jeito?”, e ela me voltou com a pergunta arrebatadora: “Mas se é tão bonito, por que você não deixa o seu igual, mamãe?”.

E foi a partir daquele dia que decidi parar com alisamento. Durante a transição capilar, também fui buscar mais a fundo e de forma mais profunda a conexão com minha história e ancestralidade.

Me juntei a grupos de causas raciais, me especializei em Diversidade e Inclusão no corporativo. Também faço palestras, participo de projetos de equidade racial, sou mentora de carreira para mulheres negras e falo sobre os nossos desafios no mercado de trabalho. Hoje sou inteira, de dentro pra fora, me olho no espelho e sei quem está ali. Olhar minha cabelereira hoje é motivo de orgulho para minhas filhas também. Elas amam meus penteados, amam minhas histórias e sentem orgulho de quem me tornei. Na verdade, de quem eu descobri ser de verdade: uma mulher corajosa, sorriso largo e cheia de muito poder. Agora Alicia tem orgulho em dizer quem é, já cuida do seu próprio cabelo, se identifica com suas raízes. Bastou eu me descobrir genuinamente para ela também se enxergar.

Alicia e Olivia me deram a oportunidade de refazer minha história. E sei que deixarei um caminho mais bonito para elas trilharem também. E foi assim que descobri que minhas filhas não precisam de nenhuma Beyoncé quando tem a mãe como eu.


Palavras-chave
Maternidaderacismo

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