Publicado em 21/12/2019, às 09h41 por Cris Guerra
FOTOGRAFIA
Há 25 anos minha mãe se foi – e uma foto que encontrei me lembrou que é hora de retomar o luto e vivê-lo direito.
“Sapato virado, a mãe morre”. A frase repetida por minha avó fez meu Sol em Leão se mudar para Virgem. Imaginando uma recíproca verdadeira, eu mantinha sapatos e absolutamente tudo terrivelmente organizado. Minha mãe exibia meu armário para as amigas, orgulhosa das roupas em degradê. Não fazia ideia de sua responsabilidade na impecável ordem das coisas.
Eu tinha 22 anos quando o câncerpairou em casa, palavra proibida e sinônimo de sentença. Por dois anos acordei e fui dormir com o revólver da morte apontado para Mamãe. Era preciso talento de atriz para dizer bom dia sem o hálito de pânico. Talvez eu a tenha matado antes da hora, dentro de mim. E aos 55 ela se foi, e não houve sapato que virasse a história. Perder mãe deveria ser nunca.
“Fico te devendo Paris”, disse meu pai na despedida. Nosso consolo era saber que seu destino era um lugar sem dor. Obriguei meu luto a descansar também, já que ele estava exausto – tinha começado bem antes. Não bastasse a ausência, passou a gritar a lembrança daqueles meses de dor. Não admiti aliviar um sofrimento para começar outro.
Tratei de não me dever nada, nem Paris. Chorei sem lágrimasou soluços, enfiei-me em lojas e enchi de roupas o armário baleado de dor. Nascia assim o meu gosto pela moda. Mamãe nem teve tempo de conhecer a internet. Levou com ela mapa da cidade que lhe ocupava a cabeça e não nos deixou sequer um projeto de GPS. Cambaleantes, cada um de nós levou seu tempo pra achar a saída. Saí pisando firme, sorrindo amarelo, mas viva. Sobrevivente da palavra que quase nos matou a todos.
Faz 25 anos. Há dias deparei com uma foto nossa, flagrante do cotidiano. Mamãe encara a câmera, eu me escondo adolescente. Ela está feliz, alegria corajosa de quem olha a vida de frente, e vejo nela um humor que julgava meu. Há serenidade naqueles olhos vivos que andei esquecendo. Olho para a foto, lembro de alguém que pareço desconhecer, sinto falta de mim, uma sirene toca. É hora de retomar o luto e vivê-lo direito, de onde quer que ele tenha parado. Brinco com a foto, faço outra igual com Francisco (eu no lugar dela, ele no meu) e estamos todos ali: Mamãe, eu, meu filho e essa continuidade.
Inauguro uma temporada de saudade em que o choro está sempre à beira do precipício. Abro a porta de saída para a dor. Tiro o mato da estrada, abro caminho e vou indo. Reviro caixas antigas, revisito cartas e casos, olho fotos como da primeira vez. Choro e riso intenso, agora de um jeito novo. Somos outros. Lembro, sorrio e celebro minha mãe. Reviro sapatos, até. Dou gargalhadas. E canto, no ritmo da minha saudade. É enorme o que nossos pais deixam em nós.
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