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“Na escola fui considerado semi-analfabeto”, conta Gilberto Dimenstein

Imagem “Na escola fui considerado semi-analfabeto”, conta Gilberto Dimenstein

Publicado em 10/07/2013, às 09h04 - Atualizado em 16/06/2015, às 13h01 por Redação Pais&Filhos


“Seja marginal, seja herói”. A frase inscrita no estandarte do artista plástico Hélio Oiticica nos anos 60 bem poderia resumir a trajetória do jornalista Gilberto Dimenstein, pai de Marcos e Gabriel. Ele, que teve um distúrbio de déficit de atenção diagnosticado recentemente, foi considerado quase um retardado na escola quando criança. Em vez de desenvolver o que seria um até compreensível horror à educação, Dimenstein extraiu dessa experiência um interesse especial por quem estava à margem e fundou um dos projetos educacionais mais interessantes do país, o Cidade Escola Aprendiz. Com foco em educação comunitária, é um laboratório onde são testados, e desenvolvidos, programas para transformar a escola numa extensão da comunidade e a comunidade numa extensão da escola, criando o bairro-escola. A lição que a gente aprende com ele é a de que, se não nos envolvermos com a cidade onde moramos, pouca chance há de mudar o que quer que seja. Reconhecido defensor da infância, ele admite que foi um pai ausente. “Eu era uma máquina de fazer reportagem, uma contradição estrondosa com o meu trabalho”. E a gente sabe como é difícil admitir isso, ainda mais pra nós mesmos. Como Gilberto prova, é percebendo o que está errado que podemos começar a  mudar. A gente mesmo ou o país.

Você é muito conhecido pelo seu trabalho ligado à cidadania. Como é que isso começou?

O que acontece é que eu tive uma formação religiosa forte, especialmente por causa da minha mãe, e também quando criança, na escola. E na religião você aprende que a palavra é fonte de transformação. O segundo lado é que eu sou de uma geração pós-guerra – nasci em 1956, a guerra acabou em 1945. Sou de uma geração de judeus que, simultaneamente, encarou o regime militar. Então, a questão da violência sempre fez parte da minha educação. A idéia de trabalhar com a questão social estava muito ligada à idéia da palavra, da denúncia da violência – o que se mistura com o prazer que eu tenho pela reportagem, prazer de descobrir coisas, contar coisas. Um bom repórter é aquele que gosta de contar o que descobriu. No final, percebi que meu prazer não era só contar, mas também sentir a modificação. Aí deu um nó na minha cabeça, porque, além de trabalhar com reportagem, fui trabalhar como educador.

E como foi o lance de trabalhar com educação?

Aparentemente, jornalismo e educação têm tudo a ver, mas, na verdade, têm pouco a ver. Quando você fala que o jornalismo tem função educacional, é porque você conta uma coisa para as pessoas com o objetivo de elas tomarem uma decisão. Isso é muito parecido com o que o professor faz na sala de aula. A diferença é que o educador vê o olho do seu leitor, e o comunicador não vê o olho do seu aluno. Só que nós jornalistas somos treinados para descobrir e revelar o pior das pessoas, o pior das coisas. Os grandes prêmios de reportagem são escândalos, denúncias. O jornalista aprende a ser cínico e cético. Já o educador tem esperança de que, por meio da palavra, as coisas mudem.
Conte um pouco sobre a presença da religião na sua vida, o seu pai e a sua mãe. Eles são imigrantes. Minha mãe veio da Amazônia; meu pai, de Pernambuco. Ele era filho de polonês; ela, de brasileiros. Um lado da família está no Brasil desde o final do século 18. Na verdade, minha matriz familiar vem do século 17, do Recife, na época da invasão holandesa. De um lado, tem a formação laica do judeu, a questão de Israel, a questão da dupla identidade, do seu país e de Israel, que era uma questão bem política; de outro lado, tem a sinagoga.

E como nasceu esse olhar para as pessoas que estão à margem?

Lembro que tinha muita dificuldade na escola, não conseguia me concentrar. Depois descobri que eu tinha três problemas: hiperatividade, distúrbio de atenção e ansiedade. Mas também era o neto e o bisneto mais velho de uma família judaica. Ou seja, carregava muitas expectativas, tinha de ser um gênio. Uma psicóloga, na época, fez um teste e disse para os meus pais que eu não era retardado, mas que não passava de um semi-analfabeto que não tinha mais jeito. O interessante é que isso me ensinou a ter um olhar muito atento em relação à marginalidade. Essa experiência influenciou quase toda a minha vida e, graças a ela, desenvolvi um olhar para quem não está incluído na sociedade. Aí juntou isso com a experiência da Segunda Guerra Mundial, que era o olhar marginal dos judeus. Eu sabia a dor de ser marginal; quando virei jornalista, meu olhar era marginal; e quando comecei a trabalhar com educação, novamente meu olhar era o de um marginal.

Quando você se interessou pelo jornalismo?

A escolha do jornalismo teve duas razões: a primeira é que você entrava sem precisar estudar, não era como medicina, engenharia, direito; a segunda é porque eu sempre amei isso. A coisa mais maravilhosa que tem é se apaixonar por uma mulher e se apaixonar por um fazer.É uma coisa tão gigantesca você se apaixonar por um fazer! A grande função do educador é transformar uma vocação em uma habilidade. Porque a vocação é o rio, e a habilidade é a intensidade que você gera a partir do rio.   O que falta realmente para o Brasil investir e mudar a educação?O problema é que o ato de educar não é uma obsessão nacional, não é uma obsessão das famílias. Essa idéia de os pais aprovarem o ensino público é resultado da ignorância. Porque, quanto mais rica a família, mais ela acha que a educação não está boa. Basta ver como atuam os pais em qualquer escola de elite: eles são os que mais reclamam, que acham que a escola está ruim. A educação nunca foi uma questão nacional, nunca foi uma questão que os brasileiros acharam fundamental. Uma das questões da pobreza é a falta de envolvimento da família na educação dos filhos. Além disso, não existe um olhar de “vamos usar a educação como instrumento fundamental para a democracia”. Independentemente de falar se a educação está ligada ao desenvolvimento econômico, ela é um direito, você tem direito de ser uma pessoa bem educada, senão não será um bom cidadão. Alguns países da América Latina, como Argentina, Uruguai, Chile, Costa Rica, já têm essa visão, mas em um país como os Estados Unidos, desde a sua formação a questão da educação era dessa forma. Outros povos, como chineses e japoneses, também já tinham essa idéia desde os séculos 17, 18. Já o Brasil não teve isso, pois sofreu com dois dramas enormes: as capitanias hereditárias, quando poucas pessoas dominavam o país, e a escravidão, que durou até quase o século 20 e fez com que a exclusão social integrasse a nossa vida. Nossos problemas não são de hoje.

Como você vê a questão das crianças entrarem mais cedo na escola?

Elas vão entrar, agora, a partir dos 6 anos. Tem pontos favoráveis e pontos negativos. O ponto favorável é que a criança fica por um maior tempo dentro da escola; o negativo é etapa dos 4 aos 6 é lúdica e não sei se as escolas vão saber trabalhar com 2.000 alunos nessa fase. Se for levar a sério mesmo, principalmente nas camadas mais pobres, é preciso começar antes de 1 ano. Mas eu acho legal ter um ano a mais na escola; é melhor do que ficar em casa sozinho. O problema é que as coisas no Brasil funcionam assim: você lança uma idéia, mas não há manutenção.

Levando em conta a sua história pessoal, você poderia ter ojeriza em relação à educação, não?

Teve um episódio, na década de 80, quando eu fazia reportagens sobre violência. Comecei a falar sobre isso em várias escolas e notei que não havia um trabalho, nem um livro, que traduzisse as questões de cidadania para os alunos. Aí eu me remeti a mim mesmo, ao aluno que se sentia desconectado. Não havia alguém para falar sobre o assunto, pois a questão da violência das cidades brasileiras era recente. Você não tinha casos de seqüestro e de assassinato. Na década de 70, as pessoas achavam que São Paulo era uma cidade de primeiro mundo; os debates de arquitetos, na época, diziam que as favelas eram um problema temporário e que, se o Brasil continuasse crescendo como estava, em 20 anos seríamos um país como a Espanha ou a Inglaterra. As questões dos meninos de rua não chegavam, do esquadrão da morte não chegavam. Essas coisas só começaram a ficar presentes na cidade no final da década de 90. Aí eu escrevi Cidadão de Papel, sobre esse momento da violência. O livro superou todas as minhas expectativas, pois eu só queria usar matérias jornalísticas para traduzir a questão da violência. Na época, quase todas as principais escolas brasileiras usaram o livro em sala de aula. Fui convidado para criar um projeto para uma escola muito sofisticada, o Colégio Bandeirantes [em São Paulo].

E como você chegou ao Projeto Aprendiz?

A idéia surgiu quando eu estava passando uma temporada em Nova York. Consistia em pegar tudo que houvesse dentro do bairro para criar uma grande rede com as escolas. Aqui no Brasil, começamos pela Vila Madalena; hoje, está se espalhando por todo o país, em várias escolas. A idéia era pegar um bairro da cidade e transformá-lo em modelo na questão educacional, um oásis educacional, para que a pastoral participasse, gente como Antonio Nóbrega desse aulas, recuperar as praças, os becos, fazer grafites etc. A Vila Madalena virou, então, o berço do bairro-escola e essa idéia foi para o centro da cidade, para escolas estaduais e para outras cidades, como São Bernardo, Belo Horizonte, Praia Grande, Nova Iguaçu.

Você acha que as crianças de hoje estão muito sobrecarregadas com cursos extracurriculares? 

Você tem de tomar cuidado para não estressar uma criança e impedi-la do prazer de brincar. Se isso acontecer, ela vai ter dificuldades no trabalho, pois o bom profissional é uma pessoa curiosa. O grande papel das escolas é fazer as crianças perceberem que o aprendizado é uma aventura. Isso tudo é perceber a riqueza que tem um quadro de Picasso, ou visitar uma cidade e se encantar com a história dela, ou o prazer que é se localizar no mundo por meio da história de seu povo. Isso também ocorre com a física, com a química. O que não pode acontecer é achar que o aprendizado é a criação de minienciclopédias ambulantes, porque você criará uma besta quadrada que não sabe ser feliz.

Como foi ser um pai educador? 

Tenho dois meninos, um de 19 e outro de 20 anos. Nessa fase na qual eu meu joguei no jornalismo, eu era um obsessivo. Fiquei 14 anos sem férias, pois aproveitava os finais de semana para fazer investigações para as minhas reportagens. Só então percebi que os meus filhos estavam se tornando distantes. E que era hipócrita, porque comecei a falar de educação sem nem sequer saber da educação dos meus filhos.
E como você percebeu isso? Chegou a um ponto em que eu estava quase sendo mordido pela cachorra de casa. Aí, teve um dia que me filho desenhou a família na terapeuta: no desenho estava a mãe dando a mão para o Gabriel e para o Marcos; eu estava de costas, no computador. Era essa a visão que ele tinha da família.

Qual foi a sua reação?

Me senti muito mal, claro! Eu era um deficiente emocional, não tinha a coisa da paternidade, eu era uma máquina de fazer reportagem, uma contradição estrondosa com o meu trabalho. Fui para Nova York já com essa crítica sobre mim, como eu conseguia me desconectar de coisas emocionais por conta de um objetivo profissional. Mas era tarde demais, e meu casamento já estava para acabar. Olhando para trás, não tinha outro jeito, eu mesmo não me suportava mais. Você passou um tempo em Nova York. Como foi isso? Foram três anos vivendo diversas contradições, o mundo virando de milênio e você, em Nova York, vendo a questão da biotecnologia, dos direitos humanos, o crime na cidade. Era fantástico. Nova York me preparou para voltar a São Paulo, mudou a minha visão de cidade. Desde que voltei, meu foco tem sido social, mas voltado para as cidades. São Paulo não é acolhedora, mas é uma cidade muito interessante, pois tem muitos projetos, grandes universidades, grandes empresas, áreas avançadas na medicina, na culinária, no marketing, nas finanças, além de sentir também a mistura desse caos urbano com a riqueza humana. E eu aprendi tudo nesse contexto. Quando você olha o número de casos de violência, de seguranças, percebe que a cidade está se esgarçando, e a rua é reflexo disso. Por isso gostei de Nova York, da questão da cultura para gerar identidade. Com o Projeto Aprendiz, hoje, por exemplo, quando você olha a Vila Madalena, os becos viraram uma galeria de arte.

Como você enxerga a informação na Internet? 

Nunca houve tanto acesso a informações de física, química, biologia. Mas acho que o computador, por si só, não gera conhecimento, o conhecimento ocorre quando a informação se torna útil. Então, a supervalorização da comunicação virtual tira um pouco da comunicação presencial. Os jovens não sabem contar uma história, a conversa é toda monossilábica e eu acho que o grande barato da vida é o encontro humano. Não que eu ache o computador um mal, pelo contrário. Acho que a Internet força o professor a ser mais professor, mais do que um simples repetidor de informações. A informação só é relevante quando você percebe o que ela tem a ver com a sua vida, no que ela pode te ajudar. Hoje há um acesso tão grande à informação que a gente não consegue nem separar o que é bom do que é ruim.  Você tem algum livro de infância que te marcou? Tem um livro que me marcou muito, que eu até chorei, que se chama Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos. Até ler esse livro eu não sabia que era possível chorar diante de uma palavra. Depois, fiquei revoltado com algumas críticas que diziam que o livro era ruim. Mas como um livro que me faz chorar pode ser ruim?

Como era para você na escola a parte de esportes e artes? Você gostava? 

Em esporte, eu tentei tudo e deu tudo errado. Na música também. Em relação ao esporte, tive de fazer uma operação na perna quando tinha uns 12 ou 13 anos; em relação à arte, eu não sabia nem desenhar. Por isso o jornalismo veio para mim, como o mar que se abre para Moisés.

Mas você valoriza isso?

Sim, mas não para mim. Esporte, pra mim, não dá. Mas em relação à inclusão social, o esporte é ótimo.

Você tem alguma história de criança que marcou?

Eu tinha doenças que estavam ligadas à hiperatividade e à ansiedade. Por isso, tive de aprender a ser gerente de mim mesmo. Ainda jovem comecei a enfrentar esses problemas, era uma sensação horrível, como se eu estivesse na 25 de Março em véspera de Natal. É uma coisa enlouquecedora.

Você chegou a ser diagnosticado? 

Só bem mais tarde, recentemente quando se agravou a minha situação. O médico disse que eu tinha distúrbio de atenção, mas eu conseguia concluir tarefas. Tem gente que não consegue, esse é o caso mais grave. Aí eu comecei a tomar remédio. Meu filho mais novo também toma.

O que você acha disso? Estão drogando muito as crianças? 

Talvez exista mesmo um excesso de medicamento, mas um pouco é bom. Meu filho está tomando há um ano e realmente melhorou, mas ele também começou a se auto-disciplinar. Isso é difícil, ainda mais para quem não sabe. É como tentar deslizar no gelo.


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