As cicatrizes contam aventuras da infância
E, mesmo depois de adultos, ainda dá aquela vontade de se jogar de cabeça em algumas brincadeiras
Um belo dia, Francisco ganhou um carrinho de rolimã. Em 15 minutos estávamos na praça, tentando aprender as manhas do brinquedo. Ele, maravilhado e cauteloso. Eu, pronta para viajar no tempo, ignorando os procedimentos de segurança.
Nunca tive um carrinho desses, mas meus irmãos tiveram, construído com tábuas e a paciência de um primo mais velho. Ao ver o presente do meu pequeno, regredi. Pedi emprestado, mas o menino tomou para si a estreia – que jamais aconteceu, diga-se de passagem. Bolei meu plano: quando ele saísse pra escola, eu fugiria com o brinquedo, pra ralar meus joelhos em paz.
Quem disse? Depois de adultos, o que não falta é medo de perder os dentes. Viajei no carrinho, sim, mas foi para décadas atrás, tempo em que os primos moravam na rua paralela acima e a transversal era a pista de corrida. “Bibiiiii!!”, gritava meu irmão ao descer a mil por hora.
A senhora que atravessava não ouviu e foram os dois parar lá embaixo, ela em seu colo magrelo e ele a gritar indignado: “Eu buzinei!”. Uma cicatriz no joelho direito me conta outra aventura: uma incursão
proibida por um lote vago, onde uma velha lata de ferro me aguardava maquiavélica, as bordas arregaçadas num sorriso de bruxa.
Ostento a marca com orgulho. Francisco também infla o peito para me mostrar a mais recente avaria. Joelhos ralados e pernas ásperas de repetidos machucados falam de alma livre, mesmo sem aderir ao rolimã.
Nas brincadeiras do seu tempo, o joelho sempre dá um jeito de treinar autonomia. Na infância, eu pedalava meu gosto por velocidade, até ser interrompida por um tombo na curva, com direito a salto mortal e cabeçada no asfalto.
Belo trabalho do anjo da guarda: restou somente uma cicatriz no dedo mindinho e um caso engraçado pra contar. Já o impacto colocou a cabeça pra pensar: tirei o pé do acelerador e deixei que o tempo fizesse a sua parte. Cheguei aqui bem mais mansa, mas o barulho das rodinhas despertou minha molecagem.
Pensei em correr de rolimã, em vez de na vida. Empurrar o espírito ladeira abaixo e deixar que ele brinque. Sem a angústia de um tempo que corre sempre mais do que nós. Depois colocar os joelhos no chão, deitar o corpo no asfalto e olhar para o céu. Aprender a rir do tempo e fazer da gargalhada o abdominal perfeito, treinando para a próxima corrida.
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