Publicado em 26/06/2020, às 08h31 - Atualizado em 17/05/2022, às 08h53 por Yulia Serra, Editora de conteúdo especializado | Filha de Suzimar e Leopoldo
Não é de hoje que a violência sexual é um assunto que deve ser colocado em pauta: sempre existiu, mas antes as histórias ficavam escondidas entre quatro paredes ou eram abafadas pela família. O abuso sexual infantil acontece e é mais frequente do que se imagina. É comum — mas não normal –, se deparar com notícias sobre abuso sexual contra crianças e adolescentes. São casos horríveis que podem envolver desde desconhecidos até pais, padrastos, professores e líderes religiosos. A violência vem de qualquer lugar e é isso que mais assusta.
De uns tempos para cá, as vítimas resolveram gritar pro mundo. O medo deu espaço à coragem. Quanto mais denúncias aparecem, mais gente se sente encorajada a denunciar. E quanto mais esse assunto aparece na mídia, mais as crianças ficam informadas e atentas. De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria, diariamente, são notificadas no Brasil, em média, 233 agressões de diferentes tipos (física, psicológica e tortura) contra crianças e adolescentes com idade até 19 anos.
Os números já são bastante alarmantes e a pandemia do coronavírus, juntamente com necessidade de isolamento social, fez com que os números aumentassem ainda mais. Durante o período inicial desse momento conturbado que vivemos, dados na UNICEF reforçaram essa tendência ao apontar que as taxas de abuso e exploração de crianças e adolescentes costumam crescer durante emergências de saúde públicas (à exemplo do surto de ebola na África Ocidental, que levou ao fechamento das escolas). A suspensão das aulas fez com que crianças passassem muito mais tempo em casa, o que gerou, consequentemente, maior exposição a possíveis familiares abusivos. Por isso, o assunto merece uma atenção especial e cuidado redobrado.
“Uma das consequências terríveis que a pandemia nos trouxe foi o aumento de abuso e violência contra crianças e adolescentes. Se para nós, adultos, é difícil falar sobre nossos sofrimentos e sobre os abusos que já vivemos (para os que já sofreram) imagine para uma criança? Uma barreira quase intransponível limitada por um muro gigantesco de medo, vergonha e falta de informação. Consegue imaginar ter que pular 5 metros de altura? É preciso muita reflexão para compreender, enorme força para aceitar e infinita coragem para falar”, conta a jornalista Mariana Reade, embaixadora da Pais&Filhos, que faz parte da campanha Eu Me Protejo, criada por Patrícia Almeida e Neusa Maria e um grupo de colaboradores diverso formado por psicólogos, médicos e defensores de direitos humanos.
“Nosso sonho é educar para prevenir a violência sexual infantil. Para isso criamos uma cartilha para crianças de 0 a 8 anos aprenderem a se proteger”, diz Mariana. Com informações e desenhos para conversar de um jeito simples com as crianças sobre seu corpo e sobre como ela pode aprender a se proteger, a cartilha é para ser lida em família, por educadores ou protetores.
“Esse isolamento social acarreta o surgimento de diversas compulsões, porque fica mais gritante e exaltado todos os conflitos e atritos que poderiam existir. Tudo fica mais exacerbado, então é mais comum acontecer a violência doméstica tanto com crianças quanto com mulheres”, pontua Ana Beatriz Cintra, psicoterapeuta especializada no tratamento de depressão, ansiedade e síndrome do pânico, mãe de Luís Henrique e Ana Gabriela.
Não tem como negar a necessidade do isolamento social como medida preventiva ao coronavírus, mas o assunto precisa ser discutido, principalmente orientando as crianças em relação a esse tipo de risco. “É preciso instruir, orientar e ficar atento à mudança de comportamento da criança”, completa. O diálogo é sempre o melhor caminho, assim como dar as instruções sobre o que pode e o que não pode para que ela saiba reagir diante dessa situação.
“É basicamente psicoeducação, então orientar, mostrar o que pode ser feito, o que não deve ser permitido – mesmo que sejam de figuras de confiança – e que ela tem sim o direito de falar não, assim como oferecer uma segurança, rede de apoio – para ouvi-la, defendê-la, e tomar as providências necessárias”. Isso não vale apenas para violência sexual, mas física (tentar educar pela força), por negligência (descaso ou descuido de coisas essenciais para o desenvolvimento da criança) e até psicológica (humilhação ou ameaça).
Acima de tudo, a especialista destaca a importância de não se calar. Por isso, se presenciar alguma cena do tipo, denuncie. Os danos vão muito além das questões físicas e tem longa duração. “A pessoa perde a vitalidade em viver, muitas vezes a criança fica na dúvida se era a culpada ou não, então se tornam adultos inseguros que não podem confiar, nas relações, sejam amorosas ou de amizade, nas pessoas e nas figuras de confiança”, diz Ana Beatriz. Caso a criança sofra repetidas vezes o abuso, também se torna um adulto mais suscetível a outros tipos de abuso, não só sexuais, mas de um patrão ou amigo, por exemplo.
Há vários “graus” de abuso e de acordo com Ana Beatriz são intensificados de acordo com a idade da criança, duração desse ato, grau de violência, a diferença de idade entre ela e o abusador, o tipo de relacionamento, entre outros. Por isso não dá para prever qual será o dano em cada um, mas uma coisa é certa: em todos trará consequências sérias. A psicoterapeuta reforça que a violência não tem justificativa: “O limite jamais deve ser imposto com agressão. Existem métodos eficazes como a firmeza da palavra que, usada em um tom adequado de voz, indicará à criança que ali é uma linha tênue, que deve ser respeitada”.
Denuncie, compartilhe, debata e até grite, se necessário. Qualquer tipo de violência deve ser notificada às autoridades, Conselho Tutelar ou uma delegacia, para que possam adotadas as medidas de proteção rapidamente.
Durante a pandemia, as denúncias anônimas devem ser feitas pelo Disque Denúncia – 181, 180 ou 100. Ainda há um serviço, lançado pelo Governo Federal, em que pode registrar a denúncia através do aplicativo “Direitos Humanos Brasil”. Esses canais servem como apoio, denúncia, amparo e orientação em todo o Brasil.
É preciso jogar luz sobre o mundo obscuro e cruel do abuso infantil. Essa é nossa maior arma para proteger as crianças.
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